quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

As hibridações da imagem "Caché e Dubois"

No filme Caché (2005) do diretor alemão Michael Haneke, um casal francês, que vive uma enrustida crise conjugal, passa a ser aterrorizado por fitas de vídeo anônimas, deixadas na soleira de sua porta. Os dois vivem uma relação fria e sem graça, marcada por eventos formais e pela total falta de comunicabilidade deles com seu filho adolescente. As fitas mostram imagens tão simples quanto misteriosas. A fachada da casa deles, ruas de Paris vistas de dentro de um carro em movimento, entre outras. No entanto, há uma sutil ligação entre elas, que traça o mapa de uma mancha sombria no passado do marido, Georges, intelectual e apresentador de um programa sobre livros.
O poder que as imagens dos vídeos exercem sobre a vida dessa família é devastador. Esse poder se cabe à ligação íntima do personagem com as imagens, e com elas somente. O escritor Philippe Dubois sugere pensarmos o vídeo como um estado ou “estado-imagem”. Para ele, quando pensamos o vídeo, convém pensar junto imagem e dispositivo, e, mais precisamente, imagem como dispositivo e dispositivo como imagem. O curioso pensarmos a metalinguagem que existe ao assistirmos a um filme, ou seja, cinema, sobre fitas de vídeo que aterrorizam um homem que trabalha na televisão. Georges vive do vídeo, da transmissão de seu sofisticado programa de TV, e é atormentado por fitas toscas, filmadas de forma artesanal, que funcionam como uma metáfora de suas memórias que retornam para atormentá-lo.
Embora presente nos três elementos, no filme em si, nas fitas e na televisão, o vídeo não é sentido como avanço tecnológico, mas como uma ligação ao passado, até um atraso. As fitas de vídeo no caso organizam o olhar, facilitam a apreensão do real, reproduzem, imitam, controlam, medem ou aprofundam a percepção visual do olho humano, mas nunca chegam a desenhar propriamente a imagem em nossa mente.
De acordo com Dubois, o advento do cinema no final do XIX em todo o contexto da revolução industrial já estabelecida e consolidada, inicia-se a terceira fase do dispositivo que se tornará “maquínica”: a fase da visualização, com efeito que só se pode ver as imagens do cinema por intermédio das máquinas, isto é, no e pelo fenômeno da projeção. O gesto humano passa a ser um gesto mais de condução da máquina do que visualização direta. O olhar é produto.
As máquinas são instrumentos tecnológicos intermediários que vêm se inserir entre o homem e o mundo. No sistema de construção de imagem simbólica o princípio de representação é o mesmo. A força da imagem reside não apenas na dimensão tecnológica, mas primeiro e sobretudo na simbologia do cinema, que é tanto uma maquinação que reproduz o pensamento, quanto uma maquinaria que manipula a psique, tanto uma experiência psíquica quanto um fenômeno físico-perceptivo. Sua maquinaria é não só produtora de imagens como também geradora de sentimentos, e dotada de um fantástico poder sobre o imaginário dos espectadores. A máquina do cinema reintroduz assim o pensamento na imagem, mas, desta vez, do lado do espectador interativo que investe o seu imaginário nas obras de autores fora do seu campo de visão, que introduzem imagens dentro do seu cérebro sem qualquer distinção de conjuntura cultural.
A grande diferença entre o mito da caverna, espelhos e as novas formas de interação com a imagem, como o vídeo e o cinema, é que, no mito, as imagens são reproduzidas pelo sujeito presente na ação. Já no cinema o sujeito reprodutor da ação esta muito distante, e, com as novas tecnologias de 3D, por exemplo, o sujeito é uma completa reprodução da máquina, ou seja, uma mentira que a cada dia mais tenta reproduzir o real.
O que assombra Georges no filme Caché é a reprodução de sua mente, o mito da caverna, inserido dentro de sua cabeça. Como já dito anteriormente, “a reprodução da imagem pelo sujeito presente”, o que não acontece. A máquina, no caso, é a arma do psicopata que agrega sua loucura em uma plataforma midiática, que, todos nós sabemos, possui muito poder e insere o personagem no mundo das lembranças armazenadas que pensava só vislumbradas por ele próprio.
A partir do momento em que a máquina deixa de reproduzir para gerar seu próprio real, ou seja, ela mesma, é claro que a relação de semelhança perde um pouco o sentido, pois já não há mais representações ou referentes. Não é mais a imagem que imita o mundo, é o real que passa a tentar se igualar à imagem.
A imagem eletrônica nunca é uma imagem real, se é que ela algum dia existiu. Ela é sempre um mero processo. Ela pode ser identificada com aquilo que aparece numa tela catódica, isto é, ao resultado de uma varredura dupla e entrelaçada em alta velocidade, numa tela fosforescente, de uma trama de linhas e pontos, por um feixe de elétrons; se bem que a cada ano isso vem mudando com os novos processos de propagação de imagem. Desse modo, a imagem de vídeo não existe no espaço, mas apenas no tempo. Sem corpo nem consistência, a imagem eletrônica só serve para ser transmitida. A imagem informática é menos uma imagem que uma abstração. Não é uma visão do espírito, mas o produto de um cálculo matemático e lógico. Os átomos e suas funcionalidades funcionam como um reflexo compensatório, o desenvolvimento das partículas neste domínio onde tudo concerne à reconstituição de efeitos de materialidade. O triunfo da simulação, a impressão da realidade se dão no lugar do real se passando por real, pois para nós é o real, porque vemos. O usuário experimenta a simulação do real. Hipertrofia o tocar, pois pode ver, ouvir e imaginar se assim o que quiser, por parte de um sistema de representação tecnológica que carece cruelmente de ambos e de todos os outros sentidos.
De acordo com Dubois o vídeo se manifesta de maneira castratória e ao mesmo tempo fertilizante, “O vídeo é ao mesmo tempo objeto e processo, imagem-obra e meio de transmissão, nobre e ignóbil, privado e público. Ao mesmo tempo pintura e televisão. Tudo isso sem jamais ser nem um nem o outro.”

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